quinta-feira, 25 de junho de 2009

Texto 07 - "O mundo não está para brincadeira"

A atriz Ana Dulce Pacheco (foto, à janela) recorreu a tons expressionistas para enfatizar o peso que se esconde sob a coloquialidade deste monólogo criado por Daniel Monteiro em 03 de junho de 2009 e apresentado em 15/06/09 na FUNDAJ. Valendo-se dos personagens da senhora de meia-idade e seu filho, o autor constrói uma atmosfera de desencanto e solidão que Ana Dulce sublinhou com uma cena estática, onde só havia o movimento das emoções contidas, filtradas nos lábios tensos que articulavam as falas. Tudo soava como se aquele fosse um momento já vivido, repetido dolorosamente na memória.

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(EM CENA, UM HOMEM DE MEIA IDADE SENTADO NUMA POLTRONA EM FRENTE A TELEVISÃO LIGADA E FORA DE SINTONIA. AO LADO DA POLTRONA ESTÁ UMA BENGALA E UMA MESA AO FUNDO. A MULHER ENTRA EM CENA COM UMA CAIXA E UM GUARDA CHUVA AINDA ABERTO.)

MULHER - Que mal costume tu tens de deixar a porta sempre aberta. (FECHA GUARDA-CHUVA) Não vês que o mundo não está para brincadeira. Essa caixa aí (APONTA PARA TV) não mostra como tudo está?
(SILÊNCIO)
MULHER - E essa chuva que não avisa que vem?
(SILÊNCIO)
MULHER - Em Frankfurt tinha hora pra tudo, sabia?
(SILÊNCIO)
MULHER - Que sujeira! Omo vamos almoçar aqui? Tu não vês a sujeira que esses gatos fizeram? (SILÊNCIO. A MULHER DEIXA A CAIXA NA MESA)
MULHER - Trouxe o que tu mais gosta: ensopado de carne com pasta caseira.
(SILÊNCIO)
MULHER - Johann, tem fezes e xixi de gato por toda a casa. Não acredito que faz três meses que tua esposa morreu. Tudo aqui parece um chiqueiro de gatos.
(SILÊNCIO)
MULHERQue falta me faz teu pai! Mas, estou aqui. Acorda. Lembra-te do que teu pai dizia: “para superar um dor, dê uma volta na praça”. Filho? (ELA VAI AO FILHO) Filho, onde tu estás com a cabeça? Filho, o almoço. Está esfriando.
(SILÊNCIO)
MULHER - Johann? (ELA TOCA NO ROSTO DO FILHO)
MULHER - Filho, tu estás me escutando?
(SILÊNCIO. ELA TOCA NO PEITO DO HOMEM)
MULHER - Filho, volta!
(SILÊNCIO)
MULHER - (ELA FALA EM ALEMÃO, GRITANDO) Socorro! Um médico, por favor!

2 comentários:

  1. O mistério e a tensão tanto do texto de Daniel e da interpretação de Dulce saltam das palavras e das cenas permeiam o ar... Algo mais forte que lágrimas ou raiva serpenteia nossas emoções e nos marca profundamente. É incrível como a sutileza e o cuidado da construção de Dulce - uma sutil virada de rosto e o fechar das janelas me marcaram bastante - enaltecem as já forte qualidades do texto. Parabéns a ambos!

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  2. Uma das melhores cenas para mim. Belíssimo texto de Daniel e performance de Dulce. Quanta sutileza nos gestos, na voz. Gostei da imobilidade criada pela atriz.

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